sábado, 27 de agosto de 2011

FANTASMAS DE AGOSTO I

FANTASMAS DE AGOSTO

Capítulo I

A aparição


Souza Filho

As ruas estavam desertas e tudo parecia tranqüilo, enquanto os ventos brandos sopravam a madrugada seca daquela noite. Eles davam uma coloração avermelhada ao céu quando erguiam a poeira solta do chão, para mais perto da pouca luz que a lua minguante oferecia. Pelas ruas ninguém mais ousava trafegar. Talvez, apenas almas perdidas de seres confusos insistiam em buscar algo, que sequer, sabiam onde encontrar. Em meio ao mórbido cenário, estes eram os únicos seres que habitavam aquele vazio civilizado e escondido pelas marcas dos devaneios próprios.

A madrugada abria-se novamente e poucas palavras eram ditas. Eles estavam ali. Nervosos e calados, felizes e apavorados. Os seus olhares não se encontravam apesar das supostas possibilidades. A noite havia sido longa e interessante. Talvez tivesse sido como uma válvula de escape para tantas perguntas sem respostas que tinham, mas que nenhum dos dois se atreveu a comentar. Jamais minutos como aqueles foram tão longos e vazios.

Era apenas uma simples madrugada de agosto que nada mais oferecia por suas certezas, a não ser as suas improbabilidades. Ela estava diante de seus olhos. Dessa vez não havia como duvidar. Aquele fantasma ressurgiu do nada, sem ser calculado. Um gosto estranho tomava conta de sua boca. A respiração era ofegante e, mesmo assim, tentava demonstrar uma tranqüilidade que não lhe era mais de domínio, assim como a sua calma falsificada. Este era o momento e em momentos assim, improváveis, o que era para ser uma simples despedida tornou-se a chegada.


Esta era a chegada daquilo que se fugiu por longos anos. Seus pensamentos eram tomados pelo medo e fascínio. Como seria possível ele ter sido encontrado? Como ela o achou? E principalmente, por quê? Olhos que antes pouco se firmaram, agora ardiam em uma febre umedecedora. O único movimento que se propunham a fazer era quando buscavam avistar algo que parecia estar vindo de longe e se perdia em meio à morbidez da escuridão. Algo como anjos noturnos que surgem quando não são esperados.

Nas sombras noturnas, tornam-se sem foco. Seres difíceis de distinguir e tão perdidos quanto aqueles que se atreveram a perambular pela noite. Guardiões de portas que talvez, jamais deveriam ter sido abertas.

Ao se deslocar, não era possível saber se aquele fantasma caminhava ou pairava sobre o chão. Os movimentos eram delicados. Seu sorriso era doce e confortante. Um sorriso que se formava em contornos de lábios finos que tinham o dom de provocar estímulos desaconselháveis para aquele momento. Os olhos negros traziam o brilho de uma crueldade, que ao mesmo tempo confortava e cortava como açoites. Era quase que possível sentir a pele se dilacerando com o fio daquele olhar. As coisas há muito, já estavam fora de controle, assim como os ossos que insistiam em suas trepidações.

Aquilo que não é planejado pode se tornar perigoso demais para ser entendido. Os instintos alertavam, mas a curiosidade e o medo, que brotavam de sentimentos remotos, instigavam a uma procura infundada de se ver o que se esconde. Os portões daquele cemitério, guardados pelos seres disformes, foram abertos. Não era possível imaginar o que lhes esperava. E então, eles não imaginaram. Em meio ao silêncio tudo soava como estranho. Os passos, também eram curtos e silenciosos, sobre o velho calçamento do cemitério. Apenas as secas folhas zuniam ao soprar do vento e assumiam formas sombrias e tenebrosas pelo caminho quieto e escuro que tomavam. As grades também se abriram, e a quem buscasse, ofereciam a chance de desbravar algo ainda não conhecido. Aquela mulher apresentava uma cor deslumbrante, mas também transparente. Na face, a coloração escarlate dos impulsos reprimidos, agora disfarçados de uma expressão inocentemente divina. Quando ela entrou, parecia uma criança travessa, prestes a cometer mais uma de suas traquinagens. Suas atitudes eram espontâneas e curiosas, porém, o aparente conforto que sentia em um lugar até então, tido como desconhecido, era uma coisa incomum. Aquilo era algo que parecia que os dois já haviam vivido em outros momentos que nunca aconteceram. Apenas um déjà-vu.

Eles foram assim durante algum tempo. Mas jamais os dois estiveram ali juntos e jamais imaginaram isso em suas vidas. Ele conhecia bem o local, pelo grande número de vezes que se trancou em sua frieza, mas ela não. Ela, jamais havia pisado neste ambiente em nenhuma de suas formas. Mas ela se sentia a vontade e ele não.

A realização do que não se planeja provoca a sequidão da garganta, que jamais se atreveria a pronunciar uma única pergunta. Por isso mesmo, nenhum deles perguntava nada. A única coisa provável que existia ali era a completa falta da razão. Nada que fosse feito, nada que fosse pensado, nada do que fora dito, teria sentido algum naquele momento. Lá fora, pelas grades e portas aberta, era possível ver que a brisa ainda corria e as folhas das velhas arvores ainda se mexiam. Mas ali dentro, era possível sentir o corpo queimar e um ardor consumi-lo como se viesse de dentro para fora, causando sensações estranhas e envolventes.

Aquilo não era certo, mas também, não sabiam se era errado. Não podiam estar ali, sozinhos naquele lugar. Jamais imaginavam o perigo que há quando se desperta algo que adormecera silenciosamente como o sono infantil de pequenos anjos doloridos em suas cólicas. Era como a violação de sepulcros lacrados que guardavam coisas, não mortas, mas escondidas em segredos perturbadores e sufocados, que se debateram ferozmente antes de serem trancafiadas e amordaçadas. Esquecidas.

Cada um dos sinais que surgiam eram cada vez mais difíceis de serem decifrados. Não eram comuns e jamais haviam sido vistos por eles. Aquele fantasma parecia sentir o medo que emanava do que a observava. Seus gestos eram calculados, e movimentava com sutileza em cada passo que dava. Em cada canto os sinais emanavam como codificações dos mesmos gestos inesperados. Desde um simples olhar ao movimento dos lábios. Lábios que provocavam. Dos braços que por receio se cruzavam, até as mãos que tremiam insistentemente. A mente não conseguia mais enviar ao corpo comandos de obediência e tudo que se passava aparentava serem atitudes cada vez mais desconexas. A única coisa que ele não podia fazer era se entregar. Mas ele se entregou.

Aquele espírito venceu o seu espírito sobre a carne. O calor que emanava causava medo aos seres sombrios e esquecidos que os observavam. O sopro de vida, que surgiu neste instante, de tão intenso que era, causava inveja a esses seres, que haviam esquecido como era boa a simples sensação de poder se sentir vivo. Algo que até mesmo para criaturas aterrorizadas, era pavoroso. As almas que por ali passavam, não entendiam o que havia se atrevido a perturbar seu descanso e recuavam amedrontadas à mesma escuridão de onde saíram.

Apesar do ambiente obscuro, o momento tornou-se iluminado, com marcas sombrias e incandescentes. Seu corpo era quente e macio, suas formas envolventes e a pele exalavam um delicioso cheiro de flores frescas. Um cheiro que somente existia nas primeiras manhãs primaveris dos bosques, que haviam bem longe daquele lugar. Mas eram como sonhos em sua mente confusa. A forragem do sepulcro era macia e sua forragem abafava os gemidos que vinham de seu interior. Por algumas vezes, as unhas que vinham lhe arrancava pedaços que se amontoavam nos cantos da pequena sala. Os cabelos se tornaram úmidos e emaranhados e sua beleza era encoberta. Hora pelos mesmos cabelos. Hora pelas expressões que teimavam em modificar seu rosto. Não era mais possível ver seus olhos que se misturavam com a cor da noite em meio aos segredos esquecidos em um velho baú de lembranças. O calor agora era frio e o frio era quente.

Ali tudo que se respirava era perigoso. O ar não tinha mais o peso costumeiro. Era algo mais carregado, repleto de novos odores que surgiam a cada movimento. Estes movimentos pareciam seguir uma sincronia não ensaiada, mas apenas seguiam seus instintos que acabaram por tomar vida própria. Ao longe nada se ouvia claramente, mas de perto, eram como palavras mal pronunciadas por bocas que não mais se separavam. Eram como gritos perdidos e satisfeitos. Insanos. Os tremores, não eram mais por medo, mas sim, pela loucura. Hora as unhas continuavam a arrancar a forragem, hora lhe arrancavam a carne. A dor que lhe causava se perdia em meio à vontade de seguir. Calafrios eram sensações comuns. O ar, que antes era pesado, agora faltava em seus pulmões. Os sentidos estavam aguçados, mas a única coisa que seus músculos faziam, eram se contorcer. Eles não fugiram. Também, nenhum dos dois queria estar sem o outro. Tornaram-se metades. Eram seus próprios algozes e redentores. Não permaneciam quietos, mas reféns de sua própria loucura. Os sentidos já não correspondiam à lógica que se tornou ausente.

Em meio ao que não podiam enxergar, as mãos tateavam tudo o que podiam alcançar. Toques objetivos, ainda que trêmulos, mas seguros em seu desespero de conhecer a cada centímetro percorrido. Eles queriam saber cada vez mais de seus mistérios e desejos. Dos seus e do outro. Os sinais já não eram os mesmos. Eles mudavam a cada nova loucura que era emanada. Não eram mais conhecidos. A cada instante, um mistério era solucionado ou pergunta respondida, mas novos mistérios e perguntas surgiam, talvez, sem respostas.

Não existia nenhuma certeza naqueles corpos ou em seus sentidos. Mas o corpo que o espírito havia empossado, era perfeito. Sua silhueta era definida e traiçoeira. Antes parecia não ter vida. Eram como o transporte de suas dores, medos e pesadelos. Nos corações ressequidos pela ação do tempo, para um deles, o efeito era latente. Tudo o que estava presenciando, era a materialização de tudo que havia imaginado outrora, em uma vida que não existia. Que não mais pertencia a ele. Seus batimentos eram descompassados, acelerados e por vezes espaçados demais pelos seus temores. As suas lembranças e também as suas dores. A cobertura dos corpos tornou-se rubra. Talvez pelo calor, talvez pelo toque, talvez pelo fluxo. O sangue lhes irrigava os caminhos e brotava das feridas que, desta vez, poderiam demorar mais que o normal para cicatrizarem novamente. Elas foram talhadas primeiramente, com ranhuras que nunca tiveram resposta. Com as dúvidas que cada um deles insistia em guardar confiaram tudo a uma espessa e pesada armadura frágil.

Algo realmente havia sido despertado. Seus sons eram como murmúrios que substituíam as palavras, que teimavam em não sair. O que era proferido nada mais passava de loucos movimentos de lábios que eram mordidos quando tentavam pedir por socorro e deixava apenas os profundos suspiros falarem pelo momento. Algo despertava das profundezas mais remotas. Mas apesar de serem como cadáveres decompostos, não tinham os rostos envoltos na dor ou no desespero, nem deliberavam o fétido cheiro de sua carne apodrecida.

Os minutos voltaram a ser intermináveis e intensos. Os corpos assemelhavam-se a espectros entrelaçados em uma espécie única de manto que apenas mudava freneticamente a forma e posição. Seguiam um sincronismo como se já estivessem acostumados àquilo. O equilíbrio, já comprometido, não conseguia sustentar a estabilidade dos seres que se perdiam e se encontravam. Que se buscavam. Que se queriam.

Era difícil compreender, que aqueles rostos, antes seguros e amargurados, buscavam uma brecha para dar espaço a um pequeno sorriso de satisfação, prazer ou sarcasmo. As mordidas vinham de todos os lados e iam para todas as partes, com a força se seus caninos. Novamente as unhas dilaceravam tudo o que podiam arranhar e seguiam as curvas dos caminhos que elas mesmas determinavam. Os gritos, que precisavam serem soltos, eram cada vez mais sufocados temerosamente. Carregando o peito com o ar empoeirado. O que dava a vida e aquecia, deixava a pele áspera, exibindo seus poros abertos e suados. O ar, novamente, apresentava outro odor. Agora tinha o cheiro do medo e talvez do receio. Os minutos já não demoravam tanto a passar. Tornaram-se rápidos, acelerados e insuficientes.

Os seres desbravadores, que buscavam se encontrar se encontravam mais perdidos do que antes. Aos seus pudores não caberia um julgamento justo, pois eram perigosos de mais para serem apresentados ou revelados. Eles corriam riscos, pois poderiam cair sob a ira de outros demônios. O que pairava sobre eles, eram apenas as sombras dos caminhos que levaria um deles de volta para casa.

Quando os seres humanos voltam a despertar os fantasmas seguem para sua sombria discrição. Para sua rotina fria e silenciosa. Deixando para trás, aqueles que foram assombrados. As sombras procuram as trevas. Para os que ficam, restam a dúvida e a incerteza do que aconteceu ou de tudo aquilo que ainda está por vir. Com o nascer do sol, o outro foge. Retorna não se sabe para onde. Mantêm o rosto encoberto pelos cabelos ainda emaranhados. Um rosto tão belo quanto misterioso. Já não existe mais nada. Apenas os rastros daquela mulher fantasma, que, não se sabe se queria ser seguida ou não. A única certeza, nesse vazio é o da culpa em uma manhã de agosto.