quarta-feira, 28 de setembro de 2011

FANTASMAS DE AGOSTO III


FANTASMAS DE AGOSTO

Capítulo III

O mês oito


Souza Filho


Devido aos seus constantes esforços, ajudando o pai nos trabalhos da propriedade, o garoto desenvolvia com um porte físico melhorado, se comparado a outro jovem de sua idade. Seu trabalho se intercalava aos seus estudos e seus estudos dominavam seu maior interesse. Talvez, a enorme quantidade de livros que havia lido, já não era mais suficiente para o tanto que ele já havia acumulado. Seus braços e pernas não paravam um segundo sequer durante seu trabalho, assim como seus pensamentos que borbulhavam como as espumas das ondas ao tocarem a praia da orla. Eram tantas histórias que brotavam, principalmente durante a noite, que ele passou a ordená-las e coloca-las em suas folhas. A cama, onde as horas sem sono e olhos abertos de antes, dava espaço para a escrivaninha, a pena e o tinteiro. Ao lado, o velho castiçal de zinco, era o suporte para a vela que iluminava sua escrita. O recosto da cadeira era o apoio para espreguiçá-lo com suas costas e braços. No sorriso discreto, a nítida emersão de uma nova seqüência da narrativa que descrevia. A alvorada, quase sempre, o surpreendia, com a os braços cruzados sobre a mesa, servindo para recostar a face sobre eles. Mesmo assim, eram noites melhores dormidas em sua cadeira do que em sua cama.

Com o tempo ele passou a ir sozinho até a província, para fazer as compras necessárias. Era uma maneira de poder poupar o pai, que já sentia o peso dos anos que vivera, apesar da solidão das viagens. As jornadas não eram mais a mesmas de quando iam juntos pelas velhas e conhecidas estradas. Com ele, enquanto seguiam sentados na carroça trepidante, nem era possível perceber a distância da propriedade até as vendas. Eram ótimas conversas, muitos risos e muitas lembranças que o pai trazia a tona, falando da sua própria infância e da sua juventude. De como havia conhecido sua mãe, o namoro e a luta para adquirirem a propriedade. O primeiro plantio e a primeira colheita. As secas e as tormentas. Tudo era falado e repetido com a mesma fidelidade dos fatos, como se fosse a primeira vez. Mas havia uma diferença em um único ponto. Agora, o velho falava de outra maneira, sobre o fato de nunca ter tido filhos. Ele agora tinha um filho. A coisa mais importante que poderia ter acontecido na vida dele e de sua querida esposa e nada poderia ser mais perfeito do que isso. Tudo que os dois puderam ensinar para ele foi ensinado. Cada cantiga de ninar, cada cuidado que deveria tomar e até mesmo, as pequenas orações que agradeciam pela vida de todos de uma casa, que sempre tiveram a certeza, de ter sido abençoada.

Estimava-se que ele já se aproximava de seus dezesseis anos. Seu aniversário passou a ser comemorado no mesmo mês que ele surgiu no vilarejo, o mês de agosto. Este era o mês que todos temiam, mas ninguém sabia por que. Os supersticiosos acreditavam que este era o mês dos cães loucos, dos demônios e das bruxas. O mês do “desgosto” era carregado de ventos que parecem gritar ao invés de soprar, capazes de deformar a face daqueles que abrissem a porta ou uma janela de suas casas, em horário indevido. As bruxas tinham um poder maior neste período e as almas perambulavam soltas pelas ruas, saindo do mundo dos mortos para aterrorizar os vivos. Havia aqueles que se benziam durante todo o dia 24. Acreditavam que nesse dia, o próprio demônio estava solto e se disfarçava para conversar com os humanos. Ninguém tinha coragem de falar com um estranho neste dia em especial, mesmo sabendo que era o dia do apóstolo Bartolomeu. Mas parecia que, o pouco falado apóstolo bíblico, exercia função quase que nenhuma, na fé dos provincianos. Para aumentar ainda mais o temor das pessoas, as cadelas entravam no cio e para cada uma delas, que caminhava pelos becos, havia dúzias de cães que ofegavam e babavam a espera da oportunidade da cópula. Do outro lado do oceano, as mulheres nunca se casavam em agosto, pois era nessa época que os navios deixavam os portos à procura de novas terras e isso deixava, as amáveis donzelas, com o temor de não terem uma lua-de-mel ou de ficarem viúvas, nos costumeiros naufrágios do oitavo mês do ano.

Ele sempre ouvia as superstições contadas pelo seu pai e relatos de fatos cada vez mais surpreendentes e outros hilários. Mas ele sabia que agosto, assim foi batizado pelos romanos em homenagem a Augusto, devido aos seus suscetíveis atos de sucesso neste mesmo mês, como a conquista do Egito. Mesmo com tamanhos feitos, a vaidade também imperava nos homens naquela época, por isso, exigiu que seu mês também possuísse 31 dias, assim como o mês de julho, seu antecessor, oferecido a Julio Cesar. Sabia que no dia 24, São Bartolomeu, havia sido martirizado por ter promovido, em um lugar chamado Armênia, várias conversões ao cristianismo e provocou a ira de seus sacerdotes. Eles determinaram sua execução, lhe arrancando a pele e depois o decapitando, em agosto de 51 d.C. Depois de morto, ainda coube a Bartolomeu, o trabalho de expulsar o demônio para as profundezas do Tártaro e abandonar o mundo terrestre. Mas para o flagelado apóstolo, houve mais um infortúnio, o de ter seu nome conhecido pelo massacre ordenado por uma mulher. Em agosto de 1572, Catarina de Médici, ordenou uma matança que praticamente dizimou os huguenotes, no massacre da noite de São Bartolomeu. A loucura dos cães, além do cio, era pelo fato do clima do mês de agosto, favorecer a proliferação do vírus da raiva entre eles e que o gigantesco dragão, que sobrevoava os céus e cuspia fogo durante todo este mês, nada mais era do que a constelação de Leo, que tomava seu espaço e se destacava entre as outras estrelas.

Enquanto sorria ao relembrar e pensar sobre o misticismo das pessoas, a estrada de cascalho ia sendo vencida. Seu silêncio, só era quebrado pelos cascos do animal nela atrelado, pelas rodas de madeira e o batido de suas tábuas, algumas mal fixadas pelos seus velhos pregos. Muitas vezes tentou entender Deus. Por mais que sempre ouvisse as pessoas falando, justificando seus atos, pedindo graças ou perdão a Ele, não entendia muito bem como era possível essa relação entre os homens e algo tão divino. Mas mesmo assim, mergulhado em tantas dúvidas, fazia rotineiramente, a pronúncia das palavras de evocação das graças que sua mãe havia lhe ensinado desde pequeno, sem saber explicar se estava fazendo certo, ou se algumas delas já haviam sido atendidas. Ele apenas fazia e deixava sua mãe feliz com isso, mas sua própria fé era questionável. Nunca, nenhuma de suas orações ou rezas, nem as de sua mãe, haviam afastado seus sonhos aterrorizantes e as sombras que corriam em suas paredes.

Logo após a floresta, de onde ele surgiu quando criança, ficava o velho cemitério. A estrada até a entrada da província era revestida de pedras. As mesmas das ruas da cidade incluindo suas deformações. Parte do seu muro era de grandes pedras e a parte superior de tortuosas barras de ferro pontiagudas. Eram como velhas e enferrujadas lanças que apontavam para o céu. Sempre que chegava nesta parte da estrada ele se calava. Sua pele ficava pálida e sua respiração cada vez mais ofegante à medida que ia se aproximando de seus portões arqueados. Seu pai percebia o aparente temor que ele sentia nesse trecho da viagem e procurava sempre arrumar logo um assunto para tentar amenizar o pavor do filho. Quando viajava com o pai, ele evitava olhar para sua direção, mas desta vez, mesmo estando sozinho, decidiu vencer seu temor e olhar pela primeira vez para além dos portões. Seus olhos então puderam enxergar um cenário mórbido. Cruzes e túmulos brotavam do chão. A velha capela era destelhada e não aparentava receber visitantes há bastante tempo, enquanto estátuas mantinham-se em pé, sobre diferentes jazigos. Definitivamente, o que viu, não o agradou. Porém, algo havia acontecido. Ele conseguiu olhar de frente para o que tanto temia. Continuava aterrorizado com o que viu, mas não tanto quanto antes e sorriu de sua própria vitória.

Seu destino estava se aproximando e os telhados da cidade já poderiam ser vistos logo após a descida na estrada. De longe, era possível ver a torre da grande igreja, construída no ponto mais alto da província e seu grande sino, que fazia suas badaladas serem ouvidas em sua casa, cerca de doze quilômetros de lá. Mesmo diante de toda religiosidade dos pais, eles nunca haviam ido até a igreja. Suas preces eram feitas coletivamente, sentados à mesa ou em uma sala, uma espécie de capela, que sua mãe enfeitava com flores e folhagens periodicamente, quando acendia algumas velas.

Agora seus instintos eram de curiosidade. Tentava adivinhar ou imaginar o tema do livro, que com certeza, ganharia do marinheiro. Sua ansiedade podia facilmente ser confundida, com agonia. Seu plano era de fazer as compras o mais rápido que pudesse e imediatamente ir para o porto, rever seu amigo viajante. As ruas não estavam tão cheias como das outras vezes. As pessoas evitavam sair de casa durante esses trinta e um dias. Os armazéns passavam a fechar mais cedo, evitando adentrar em qualquer pedaço da noite. Talvez nem encontrasse todas as coisas que estavam na lista que seu pai lhe dera.

Apenas algumas coisas não foram encontradas de todas as listadas. Seus afazeres estavam concluídos. Algumas pessoas conhecidas de seu pai se atreveram a perguntar sobre o velho e por qual motivo, como não era de costume, o garoto estava sozinho naquele dia. Ele respondia, disfarçando sua pressa de ir ao porto, que o pai estava bem, mas que havia preferido ficar em casa, confiando a ele e sua responsabilidade, as compras daquele mês.

O porto não ficava tão longe assim dos armazéns. Eram apenas algumas poucas ruas tortuosas a serem percorridas e já era possível se ouvir o barulho dos viajantes e de outros comerciantes próximos à praia. Mas como toda a cidade, o porto também estava quase sem ninguém a perambular. Apenas algumas bancas e tendas estavam armadas. O que havia para ser negociado, não agradava tanto assim aos compradores. Os produtos já não eram tão frescos assim e não havia tantas novidades. Os alimentos e frutos do mar, não exalavam um odor agradável, mesmo que fosse possível. Todos os pescadores temiam enfrentar os ventos e o mar para trazerem peixes, mariscos e caranguejos, para serem vendidos. As cabras, porcos e galinhas, estavam magros. A estiagem havia sido intensa dessa vez. O cenário era incomum neste lugar acostumado com centenas de pessoas ofertando, aos gritos, seus melhores preços e produtos. Mas ele tinha um lugar definido para ir. Ele queria encontrar o marinheiro que tinha seu lugar reservado pouco além da metade do píer. Enquanto percorria a distância, até o costumeiro local, os olhos dos poucos comerciantes se voltavam a ele com uma fixação pesarosa. Por mais que não entendesse o motivo desses olhares, aquilo o incomodava e sentia sua garganta sendo esmagada por mãos invisíveis. Seus batimentos aumentavam na mesma proporção da velocidade de seus passos. Sua corrida só foi interrompida, por alguém que lhe segurou forte por um dos braços e pronunciou algo que poderia ser entendido como um lamento ou pesar. Todos sabiam da amizade entre o menino e o marinheiro. Sempre os viam conversando por longos minutos e admiravam a coragem do garotinho por ficar tanto tempo ao lado de uma pessoa de tal aparência. Fazendo todo o contrário, de muitos homens que o temiam, apenas de vê-lo calado ao longe.

Algo havia acontecido. O marinheiro não estava no seu local costumeiro. Todos pararam e contemplaram o vazio daquele momento, expressado na face de um jovem, que parecia ter perdido algo de importante. Alguém comentou sobre os destroços de uma caravela que foram avistados há alguns quilômetros da costa. Deram certeza que as bandeiras eram as mesmas usadas pelo seu amigo. Algumas coisas foram recuperadas por outros navegantes e uma delas, assim que puxada a bordo, remeteu de imediato, em alto mar, o pensamento de outros marujos ao garoto que viam no porto. Era um velho baú trancado. Pesado e resistente, feito de madeira e ferro com um grande cadeado que mantinha o seu conteúdo em segredo. Quando aberto e revelado seu interior, a tripulação teve um único pensamento e uma única certeza. Aqueles livros eram para uma pessoa em especial. Toda uma coleção, de vários lugares e terras, só poderia ser para uma pessoa em especial. Sabiam que não se tratava de ouro, jóias ou prata, mas sabiam que aquilo seria um verdadeiro tesouro para aquele menino. As outras coisas recuperadas foram divididas entre a tripulação. Alguns se recusaram a receber qualquer coisa e colocaram-se de fora da partilha fúnebre. Alegavam que não queriam ter algo guardado que pudesse aprisionar o espírito de um morto. Nenhum corpo ou sinal de sobreviventes foi visto. Todos, aparentemente, estavam mortos.

O garoto abriu e olhou o interior do velho baú. Realmente estava abarrotado de livros que nunca havia visto. Levantou sua cabeça e olhou a linha do mar e o seu horizonte. Confortado com apertos em seus ombros, silenciosamente, alguns homens providenciaram carregar o grande baú para a carroça que ele conduzia. Passos lentos o levaram para fora do cais e uma estranha sensação tomava conta de seu peito. Era seu primeiro contato com a morte e era hora de voltar para casa e levar as coisas que havia ido buscar. Na carroça, um item não esperado. O baú do marinheiro causava um esforço extra ao animal que dava movimento a ela. Para aliviar o peso, decidiu descer e caminhar ao lado do cavalo, segurando suas rédeas. O silêncio da estrada parecia maior, ou eram as lembranças do amigo, que não permitiam que ele ouvisse mais nada ao seu redor. Na tentativa de buscar uma explicação do que realmente poderia ter acontecido, lembrou-se das lendas sobre o mês de agosto. Apesar do tempo que o conheceu ele havia prestado atenção apenas em suas aventuras, mas jamais havia perguntado se ele tinha uma família. Sentiu-se mal por isso. Não sabia dizer se havia sido descuidado ou egoísta de não ter perguntado. Agora, ele sequer sabia se o amigo havia deixado uma viúva ou filhos. Nem mesmo de onde ele era. Sua vida continuou sendo um mistério, assim como a sua morte.


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